O REINADO DA POESIA

Ao entrar em uma livraria na região do Alentejo, Portugal, Carlos Gomes diretor do filme “O Poeta Rei”, se deparou com o livro “Meu Coração é Árabe”, uma coletânea de poetas mouros que viveram ao sul da Península Ibérica entre os séculos V e XII. Entre os bardos presentes na obra, um deles o fascinou: Al Mu´tamid Ibn Abbad, que ascendeu ao trono de Sevilha no ano de 1069.  Naquele instante uma inquietude se apossou de Carlos, urgia saber da vida e da poesia desse Soberano que, como percebeu o diretor, “expressava a contradição de desejar viver a vida e ao mesmo tempo provocar a morte, nas tantas guerras pela disputa do território Andaluz”. Pela via da artes, Al Mutamid contava ao mundo as contradições de seu vasto interior. 

 

A história recente da produção começa  neste encontro na livraria. Mas quem sabe ela não começou mil anos antes, na adolescência do futuro rei, no momento que ele chega à atual cidade de Silves, Portugal, lá cercando-se de outros poetas e sábios do Al Andaluz, inicia sua intensa vida de prazeres sensuais e especulação intelectual. Fascinado pela busca do conhecimento, uma característica, diga-se, do auge da era islâmica, e sabendo que até a própria busca se transforma em saber, o diretor português empreende uma viagem que vai de uma pequena cidade alentejana até o Marrocos, passando por Sevilha. O ator Adriano Carvalho conduz essa jornada como um alter ego do diretor e ao mesmo tempo encarna a figura de Al Mu ‘tamid, contando em poemas parte de sua história. Essa também é uma viagem para dentro do pensamento do Rei, como nos conta Carlos Gomes. “Ao tentar entrar na cabeça de Al Mu ‘tamid, não sei se o consegui, mas de fato essa foi a ideia do filme, através, digamos, de um ator que vai à procura do mito deste personagem. É um bocadinho como recontar da minha própria história com ele, mas por via de outra pessoa, isso também é muito interessante, porque o Adriano é um grande ator, e de uma forma muito sutil, passa esse progressivo envolvimento com aquilo que vai narrando Al Mu´tamid. Uma das coisas que me fascinou na persona dele, foi ser, ao contrário dos poetas da época que trabalhavam a pedido de outros,  alguém que tinha a possibilidade de falar na primeira pessoa, porque era rei, era um homem poderoso e, portanto, falava do que lhe apetecia e do que queria falar.” 

 

Nessa imersão poética vamos conhecendo a fascinante história de Al Mu ‘tamid, suas amizades, seus amores e o intenso conflito de um homem possuído pela sensibilidade vivaz da poesia mas também preso aos seus compromissos com o poder.  Desde muito cedo ele foi chamado a essa responsabilidade oficial por seu pai  Abbad Al-Mu´tadid – considerado um governante implacavelmente violento – que reprovava seu estilo livre de ser e suas amizades, particularmente com outro poeta, Ibn Amr. Em uma das passagens mais belas do filme, Al Mu ‘tamid narra seu encontro com Intimad que viria a ser sua esposa. Durante uma cavalgada na companhia de Ibn Amar, a dupla avista à beira de rio um grupo de moças em sua faina de lavadeiras e, inebriado pela “visão da beleza daquelas mulheres”, o Poeta Rei propõe ao amigo o desafio de “perseguir a minha rima”. Ele inicia um verso, mas antes que o companheiro pudesse responder com outro verso, uma voz feminina dá a resposta ao poema, completando-o. É Intimad quem “vence” o desafio e toma o coração do Poeta. Anos depois, por um sortilégio do destino, Ibn Amar, aquele que tão harmoniosamente dividia o espírito artístico com Al Mu´tamid, acaba, anos depois, sendo executado pelas mãos do antigo amigo, na cela onde se encontrava preso em consequência de uma traição política. Amar ocupou o cargo de ministro no Reino de Sevilha, mas ao conquistar a localidade de Múrcia tentou torná-la independente do reino. “O dia em que eu o matei foi um daqueles momentos em que a amizade de um homem se encontra em círculos de cólera e não consegue fugir”, conta o Rei. 

 

Percorrendo o tempo e o espaço através da poesia e da história, Carlos visita o passado e o presente, de certa forma, sem sair da sua Portugal natal.  “A verdade é que eu, cada vez que viajo para Marrocos, sinto-me bastante em casa. Ou seja, ao fim de dois, três dias, sinto-me muito próximo daquilo que acho que é, o mais íntimo, vá, do meu ser, não é? Da minha personalidade, da minha emocionalidade. Talvez através de uma herança genética e também comportamental de hábitos culturais mais sedimentados no sul do país. A sensação que eu tenho é que há um mundo, uma cultura gigantesca, não é? Mas, quer dizer, de certa forma, no Ocidente e, em particular, em Portugal e em Espanha, países onde isso faria  sentido, é bastante ignorado. O que não deveria acontecer. É uma brutalidade. Não é uma civilização com a qual nós não tenhamos nada a ver. Em Portugal, acho que há cerca de 18 mil expressões do árabe, da língua árabe na nossa língua portuguesa.  Nós a falarmos, normalmente, no nosso cotidiano, estamos a vincular, digamos, uma cultura, não é? E só isso já seria, digamos, a razão suficiente para haver essa maior proximidade. Nós também somos árabes. Mas tem uma coisa que eu tenho tentado perceber, e, ao mesmo tempo, questionado, por quê não há maior relação entre Portugal e o mundo árabe, pelo menos neste plano cultural, o que é muito estranho. A única explicação que encontro para isso é o fato de, se calhar, politicamente e historicamente, estarmos a falar do povo que foi expulso, que foi derrotado, não é?”.

 

Uma das raízes de O Poeta Rei, um filme indefinível entre o documentário e a ficção, para o diretor é uma “ficção psicológica”, é um concerto musical. Carlos reuniu músicos portugueses, espanhóis e marroquinos para cantar a poesia de Al Mu ‘tamid nos idiomas dos três países. A apresentação foi levada ao Brasil em 2017 na Sala São Paulo como parte da programação da 12ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, com o título de “Al-Mu’tamid, poeta rei do Al-Andalus – Uma viagem por dez séculos de música e interculturalidade”. “Foi, de fato, um acontecimento muito bonito. Eu próprio, confesso, pensava que nós íamos tocar pra, sei lá, 300 pessoas, e a sala de São Paulo estava completamente esgotada. Realmente uma reação brutal, de aprovação esmagadora. Foi particularmente bonito porque eram famílias inteiras, ou seja, três gerações, avós, pais, filhos, de descendentes, sobretudo, libaneses, creio. Foi muito bonito, de fato, ver essa espécie, digamos, de contato entre eles, que transportam essa cultura no seu dia-a-dia, e esta espécie de memória daquilo que foi essa cultura na Península Ibérica. E perceber que esse mundo ainda existe em uma determinada realidade.”

 

Com a presença do diretor, “O Poeta Rei” fará sua estreia no Brasil nessa 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, coroando uma parceria e uma conexão que começou em 2017. É um projeto ligado ao ICArabe não só porque iniciou com o concerto apresentado em São Paulo e depois inspirou um filme, mas por estar em sintonia com os propósitos do Instituto de Cultura Árabe: aproximar culturas, quebrar rótulos e preconceitos através do conhecimento e da arte. Nos primeiros minutos da projeção ouvimos a voz em off do narrador-ator nos levando a refletir… um coração se pode definir por um lugar cultural? Esta possibilidade é absolutamente encantadora, mágica: ser atraído, se reconhecer em uma outra cultura através de traços sensíveis, que podem vir de uma nota musical, um verso, ou do aroma de uma especiaria nos transportando a um lugar desconhecido, e ao mesmo tempo reconhecível em nosso ser, mesmo que você não seja geneticamente árabe. É algo além do  resgate  da cultura árabe nos solos lusitanos,  que nos chegou aqui por duas vias principais: a imigração sírio-libanesa e a influência moura nos portugueses que colonizaram o Brasil. 

 

Ao final desse artigo/entrevista, peço licença para falar em primeira pessoa e contar da minha emoção a ver no correr dos créditos uma homenagem a Edgardo Bechara El Khoury, falecido precocemente e diretor do Cine Fértil, instituição também dedicada a divulgação do cinema e da cultura árabe, incansável defensor e promotor desse “coração num lugar cultural”, que nos fala “O Poeta Rei”, produção que o próprio Edgardo era um entusiasta. Nesse universo fraterno, nessa humanidade em comum nos encontramos.