A HUMANIDADE EM RISCO
Dois filmes palestinos abrem a 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, o documentário “Lyd”, de Sami Younis e Sarah Friedland com produção do músico inglês Roger Waters, e “O Professor”, roteiro e direção de Farah Nabulsi. O primeiro é um documentário, com partes de ficção científica, que retrata a situação atual da cidade de Lyd e cria uma situação ficcional – uma espécie de realidade paralela – imaginando como seria a cidade se a Nakba, expulsão de parte da população palestina pelos israelenses em 1948, nunca tivesse acontecido. Já em “O Professor”, a história acontece na Cisjordânia, onde um educador do ensino médio se vê dividido entre proteger um aluno da opressão de Israel e colaborar com a resistência palestina.
O genocídio está em curso em Gaza. Estamos assistindo a covardia militante e o silêncio vil dos governos do norte global, mas através das artes, do cinema, vemos que a Palestina sangra, mas ainda tem voz, vida, beleza e encanto. Farah Nabulsi entrevistada pela Revista Diálogos Nur, considera “O Professor” uma história profundamente humana, ambientada em uma realidade brutal, injusta e violenta. Acompanhe aqui o seu depoimento.
Por favor, conte-nos sobre a experiência de filmar um longa-metragem depois de ser indicada ao Oscar pelo curta “The Present”, e como surgiu a ideia de filmar a história de “O Professor”?
Quando fiz “The Present”, senti como se tivesse corrido uma maratona intensa. Mas depois de fazer um longa-metragem, esse curta foi um passeio no parque comparativamente ao “O Professor”, foi o teste de resistência definitivo, especialmente porque o ambiente no local também era muito pior do que quando filmamos “The Present”. O que eles têm em comum, com os altos e baixos, mais altos ao longo do caminho, é que durante os dois processos de filmagem eu me senti viva e gratificada como ser humano, especialmente por serem filmes com profundidade e significado para mim. No que diz respeito à ideia de “O Professor”, a história em si é o acúmulo de vários eventos da vida real na Palestina militarmente ocupada e colonizada, juntamente com minha imaginação visual e verbal como cineasta. Apesar de ter nascido, crescido e sido educada no Reino Unido, meu sangue e herança dos lados dos meus pais são muito palestinos. Uma das histórias que encontrei durante minhas viagens à Palestina é a história de Gilad Shalit. Ele era um soldado da ocupação israelense que foi capturado em 2006 pela resistência e, em 2011, foi libertado em troca de mais de mil prisioneiros políticos palestinos, centenas dos quais eram mulheres e crianças. Eu me lembro de pensar na época: “uau! – uma pessoa para mais de mil outras!”. Que desequilíbrio louco nos valores da vida humana. Por outro lado, ao longo dos anos, conheci e tive inúmeras conversas com palestinos que vivenciaram, em primeira mão, muitas das coisas absurdas e cruéis que acontecem no filme, algumas das quais eu mesmo testemunhei, como as demolições de casas, as crianças palestinas prisioneiras em detenção militar e o vandalismo e a violência dos colonos.
Quais são os desafios de filmar na Palestina? Quais dificuldades o Estado de Israel impõe à filmagem e ao lançamento de filmes?
O filme foi rodado na Cisjordânia, principalmente na área de Nablus, durante um período de três meses. Além dos trabalhos práticos e logísticos e turbulências habituais de fazer cinema independente – orçamentos apertados, locações que não funcionam no último minuto, falta de tempo e assim por diante, ao filmar na Cisjordânia da Palestina, você também tem as agressões dos colonos e a ocupação militar acontecendo em tempo real ao seu redor. Os militares israelenses colocam postos de controle móveis e aleatórios nas estradas ou as fecham arbitrariamente, o que é muito frustrante no processo de produção cinematográfica. Mas esses eram elementos que eu esperava. O que eu não estava tão preparada era para os desafios emocionais de rodar um filme como este na Palestina. Você está trabalhando numa história que acontece em uma realidade dura, enquanto filma com esta realidade se desenrolando ao seu redor em tempo real. Um exemplo disso aconteceu durante o período de filmagem: colonos israelenses incendiaram oliveiras na vila de Burin, onde nossa história é ambientada. Isso é algo que também acontece na história de “O Professor”! Outro exemplo foi encontrar um casal e seus seis filhos pequenos às cinco da manhã, parados na beira da estrada em frente aos escombros de sua casa recém-demolida (de novo, algo retratado no filme). Eles até começaram a lançar bombas em Gaza quando estávamos filmando, o que aumentou as tensões em toda a Palestina. Então, além dessas coisas naturalmente deixarem todos nervosos, para mim foi um tremendo desgaste emocional absorver tudo isso enquanto tentava permanecer otimista e seguir com o filme naquele ambiente.
Qual é o tema principal do seu filme? O que você gostaria que o público soubesse sobre os palestinos e a Palestina?
Os principais temas para mim são o amor dos pais e a busca por justiça. Minha intenção com “O Professor” sempre foi levar o público a uma jornada emocional nas vidas e experiências dos personagens. Também espero que o filme ofereça um contexto mais profundo e pessoal ao público dessa paisagem sociopolítica, um contexto mais humano que muitas vezes está ausente do discurso. E acho que, com tudo o que aconteceu desde o lançamento do filme, e toda a morte e destruição que caiu sobre Gaza no ano passado, gostaria que o público se perguntasse: essa é uma realidade que eles aceitariam para si mesmos… e se não aceitariam, então, por que diabos o povo palestino deveria?
Quão importante é fazer e exibir seu filme enquanto a Faixa de Gaza está passando por um genocídio? Quais sentimentos você experimenta nesse momento?
“O Professor” é uma história profundamente humana, ambientada em uma realidade brutal, injusta e violenta – de ocupação, apartheid e colonização sofrida pelos palestinos por décadas, enquanto Israel vem conduzindo um genocídio doentio e cruel. Em um nível pessoal, sou verdadeiramente grata por este filme ter recebido todos os prêmios e reconhecimentos que vem recebendo. É a única coisa que me manteve sã enquanto testemunhamos a crueldade e a carnificina, bem como a insana hipocrisia global, corrupção política e padrões duplos. Então, sou grata por termos conseguido compartilhar esta obra neste momento, acredito que falo em nome de todos aqueles que trabalharam comigo, que esta é a nossa contribuição e nosso engajamento ativo em solidariedade ao povo palestino, agora que está sofrendo com toda a dor e perdas inimagináveis. Então, sinto-me orgulhosa, honrada e privilegiada por poder emprestar minha expressão artística a tudo isso, especialmente neste momento.