QUANDO NÃO HÁ ESCOLHA 

Em Aden, parte sul do Iêmen, uma família de classe média iemenita passa por tremendas dificuldades financeiras, Ahmad, o pai, foi demitido de um canal de televisão, trabalha como motorista de uma van e luta pra receber os que os ex-patrões lhe devem, eles estão na iminência de se mudarem para uma casa em condições muito precárias quando revela-se que Isra´a, a mãe, está grávida do quarto filho. Num  país recém-saído de uma guerra que durou quase nove anos e matou 150 mil pessoas, a família não tem condições nem de sustentar apropriadamente os seus três filhos. Ahmad, pressiona a mulher a abortar. Enquanto ele está decidido, ela vacila e se sente culpada por pensar nessa possibilidade, mas não vê outra saída. O casal procura respaldo religioso em declarações de clérigos e citações do Corão. Isra´a, ainda que com drama de consciência, apela por ajuda às médicas que a atendem, nenhuma delas a socorre. Para o diretor de “Um Fardo”, Amr Gamal, o filme não trata sobre o direito ao aborto: 

 

“O problema são as condições econômicas, de como a economia empurra as pessoas para tomar esta decisão. Isso levanta uma questão: ter mais um filho é necessário? Se você não tiver como sustentá-los, as outras crianças vão afundar na pobreza. Talvez elas não tenham as mesmas chances. Então devemos manter a gravidez? Só   por que achamos que é proibido, ou não é bom? No filme há uma cena em que o pai cita o profeta Al-Khabar: Deus teria dito para matar uma criança, porque no futuro ela será um fardo para os pais. Então, o personagem pensa que é o mesmo caso dele. Isso cria uma discussão. Se Isra´a fizer o aborto em sua casa talvez ela morra. Porque quando você precisa abortar, ninguém pode te impedir. E a mulher é forçada a fazer isso de uma forma que não é segura, não é saudável.  Há muitos questionamentos a se fazer. “Um Fardo” foi motivado pelo colapso econômico e quão brutal é essa guerra e como de repente começamos a pensar em abortar nossos filhos porque não temos dinheiro para alimentá-lo. E esse filme foi baseado na história de um amigo meu”. 

 

“Um Fardo” nos revela uma série de nuances em relação à situação da mulher na sociedade iemenita. Amr entende que, se retratasse as mulheres do Iêmen de uma forma estereotipada, teria um outro efeito no chamado Ocidente:

 

“Se eu fizesse um filme com esse retratando um mulher que está lutando contra a comunidade para fazer um aborto, ficaria mais palatável para o Ocidente, mas fizemos um filme sobre a família que tenta sobreviver às dificuldades, e sobre a decisão mútua entre esposa e marido. E isso é algo novo também, eu acho, porque vimos muitos filmes de aborto. Acho que fiz isso inocentemente, e as pessoas me disseram que gostaram  daquela dinâmica entre marido e mulher, da forma como ela se recusou que ele colocasse a mão nela, de como ele chora para se desculpar de uma agressão anterior. Essas coisas foram surpreendentes para muitos, até mesmo em alguns países árabes, mas é assim que vejo as mulheres na minha sociedade. Elas são fortes, são lutadoras. Elas não aceitam a humilhação. Já havia essa dinâmica no meu filme anterior “10 Dias Antes do Casamento”, que é um filme comercial, de comédia, onde a mulher também era forte. Esse é o meu entorno, minha família, a mulher do meu bairro. Com certeza, há violência doméstica em todo o mundo. Mesmo nos Estados Unidos e na Europa. Mas tenho certeza de que no Iêmen é muito equilibrado”.

 

“Um Fardo” foi premiado em diversos festivais no Oriente Médio, África, Europa e Estados Unidos, mas ainda não foi exibido em Áden, onde foi filmado, porque na cidade não existem salas de cinema, todas foram destruídas na guerra civil de 1994. Nesse momento, Amr prefere reconstruir um antigo cinema do que apresentar em locais alternativos, como um salão de festas, por exemplo. Ele está pessoalmente envolvido nesse projeto de reconstrução e já tem o apoio da UNESCO para a empreitada. O registro do patrimônio histórico e cultural da cidade é um dos objetivos do diretor, no filme, cada cena é projetada para preservar a memória de uma edificação, como a livraria Obadi, a mais antiga de todo o Golfo Pérsico. Para obter esse retrato, a produção  usou muitas tomadas longas e em plano aberto. Amr contratou até o fotógrafo indiano Mirnal, experiente nesse tipo de filmagem. Ele está preocupado não só com a preservação arquitetônica, mas também de múltiplos aspectos culturais da cidade e do país. “O Iêmen é especial, e Aden é muito especial para mim. Por razões políticas, Aden não foi mostrado na mídia. E muita injustiça aconteceu aqui. Então esse é sempre o meu motivo para fazer mais e mais filmes. Para que eu possa documentar a cidade, documentar o dialeto do povo de Aden”, revela Amr. Sutilmente, ele insere uma cena onde aparece um casal da comunidade Bohra, de confissão muçulmana shia, minoritária e que vem sofrendo discriminação; para dar um recado de tolerância e respeito às culturas.  A luta pela reconstrução e preservação da cidade é para ele uma jornada difícil, porém, doce. “Porque amo minha cidade e me recuso a deixar Áden”. Amr conta que teve muitas chances de sair para o exterior, mas recusou todas elas. “Eu sou privilegiado por ter esta chance de nascer para viver e passar minha vida em um país especial que tem muitas histórias. Eu tive o privilégio de fazer parte desta comunidade que é uma comunidade muito bonita. Às vezes eu os odeio, mas no fundo, eu os amo”. 

 

O Iêmen vem sendo massacrado ao longo dos anos, mas se mantém em pé, orgulhoso, com uma cultura diversa e cosmopolita, mesmo que esse termo seja preconceituosamente apenas associado a lugares como Nova Iorque ou Berlim, numa arrogante hierarquização das culturas. “Um Fardo” é uma narrativa intensa, sensível, de um drama familiar, sem deixar de lado a história e a essência de um país. Desse modo,  o autor nos leva a também, como ele, a amar Aden e o Iêmen. E o seu filme.