REVISTA DIÁLOGOS NUR

Nur. Luz em árabe. Uma seção na página da 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema para discutir e refletir sobre os temas, ideias e diferentes visões dentro da grande diversidade do mundo árabe e da sua inquieta cinematografia. Nessa edição, publicamos quatro artigos com depoimentos dos diretores e diretoras dos filmes “O Professor”, “O Poeta Rei”, “Imortais” e “Um Fardo”. Esse contato direto com os criadores nos permite revelar novos ângulos, desvendar os processos de criação, descobrir intenções e aprofundar todo o contexto histórico e cultural das obras. 

A HUMANIDADE EM RISCO

Dois filmes palestinos abrem a 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, o documentário “Lyd”, de Sami Younis e Sarah Friedland com produção do músico inglês Roger Waters, e “O Professor”,  roteiro e direção de Farah Nabulsi. O primeiro é um documentário, com partes de ficção científica, que retrata a situação atual da cidade de Lyd  e cria uma situação ficcional – uma espécie de realidade paralela – imaginando como seria a cidade se a Nakba, expulsão de parte da população palestina pelos israelenses em 1948, nunca tivesse acontecido. Já em “O Professor”, a história acontece na Cisjordânia, onde um educador do ensino médio se vê dividido entre proteger um aluno da opressão de Israel e colaborar com a resistência palestina. 

O genocídio está em curso em Gaza.  Estamos assistindo a covardia militante e o silêncio vil dos governos do norte global, mas através das artes, do cinema, vemos que a Palestina sangra, mas ainda tem voz, vida, beleza e encanto. Farah Nabulsi entrevistada pela Revista Diálogos Nur, considera “O Professor” uma história profundamente humana, ambientada em uma realidade brutal, injusta e violenta. Acompanhe aqui o seu depoimento. 

Por favor, conte-nos sobre a experiência de filmar um longa-metragem depois de ser indicada ao Oscar pelo curta “The Present”, e como surgiu a ideia de filmar a história de “O Professor”?

Quando fiz “The Present”, senti como se tivesse corrido uma maratona intensa. Mas depois de fazer um longa-metragem, esse curta foi um passeio no parque comparativamente ao “O Professor”, foi o teste de resistência definitivo, especialmente porque o ambiente no local também era muito pior do que quando filmamos “The Present”. O que eles têm em comum, com os altos e baixos, mais altos ao longo do caminho, é que durante os dois processos de filmagem eu me senti viva e gratificada como ser humano, especialmente por serem filmes com profundidade e significado para mim. No que diz respeito à ideia de “O Professor”, a história em si é o acúmulo de vários eventos da vida real na Palestina militarmente ocupada e colonizada, juntamente com minha imaginação visual e verbal como cineasta. Apesar de ter nascido, crescido e sido educada no Reino Unido, meu sangue e herança dos lados dos meus pais são muito palestinos. Uma das histórias que encontrei durante minhas viagens à Palestina é a história de Gilad Shalit. Ele era um soldado da ocupação israelense que foi capturado em 2006 pela resistência e, em 2011, foi libertado em troca de mais de mil prisioneiros políticos palestinos, centenas dos quais eram mulheres e crianças. Eu me lembro de pensar na época: “uau! – uma pessoa para mais de mil outras!”. Que desequilíbrio louco nos valores da vida humana. Por outro lado, ao longo dos anos, conheci e tive inúmeras conversas com palestinos que vivenciaram, em primeira mão, muitas das coisas absurdas e cruéis que acontecem no filme, algumas das quais eu mesmo testemunhei, como as demolições de casas, as crianças palestinas prisioneiras em detenção militar e o vandalismo e a violência dos colonos. 

Quais são os desafios de filmar na Palestina? Quais dificuldades o Estado de Israel impõe à filmagem e ao lançamento de filmes? 

O filme foi rodado na Cisjordânia, principalmente na área de Nablus, durante um período de três meses. Além dos trabalhos práticos e logísticos e turbulências habituais de fazer cinema independente – orçamentos apertados, locações que não funcionam no último minuto, falta de tempo e assim por diante, ao filmar na Cisjordânia da Palestina, você também tem as agressões dos  colonos e a ocupação militar acontecendo em tempo real ao seu redor. Os militares israelenses colocam postos de controle móveis e aleatórios nas estradas ou as fecham arbitrariamente, o que é muito frustrante no processo de produção cinematográfica. Mas esses eram elementos que eu esperava. O que eu não estava tão preparada era para os desafios emocionais de rodar um filme como este na Palestina. Você está trabalhando numa história que acontece em uma realidade dura, enquanto filma com esta realidade se desenrolando ao seu redor em tempo real. Um exemplo disso aconteceu durante o período de filmagem: colonos israelenses incendiaram oliveiras na vila de Burin, onde nossa história é ambientada. Isso é algo que também acontece na história de “O Professor”! Outro exemplo foi encontrar um casal e seus seis filhos pequenos às cinco da manhã, parados na beira da estrada em frente aos escombros de sua casa recém-demolida (de novo, algo retratado no filme). Eles até começaram a lançar bombas em Gaza quando estávamos filmando, o que aumentou as tensões em toda a Palestina. Então, além dessas coisas naturalmente deixarem todos nervosos, para mim foi um tremendo desgaste emocional absorver tudo isso enquanto tentava permanecer otimista e seguir com o filme naquele ambiente.

Qual é o tema principal do seu filme? O que você gostaria que o público soubesse sobre os palestinos e a Palestina? 

Os principais temas para mim são o amor dos pais e a busca por justiça. Minha intenção com “O Professor” sempre foi levar o público a uma jornada emocional nas vidas e experiências dos personagens. Também espero que o filme ofereça um contexto mais profundo e pessoal ao público dessa paisagem sociopolítica, um contexto mais humano que muitas vezes está ausente do discurso. E acho que, com tudo o que aconteceu desde o lançamento do filme, e toda a morte e destruição que caiu sobre Gaza no ano passado, gostaria que o público se perguntasse: essa é uma realidade que eles aceitariam para si mesmos… e se não aceitariam, então, por que diabos o povo palestino deveria? 

Quão importante é fazer e exibir seu filme enquanto a Faixa de Gaza está passando por um genocídio? Quais sentimentos você experimenta nesse momento? 

“O Professor” é uma história profundamente humana, ambientada em uma realidade brutal, injusta e violenta – de ocupação, apartheid e colonização sofrida pelos palestinos por décadas, enquanto Israel vem conduzindo um genocídio doentio e cruel.  Em um nível pessoal, sou verdadeiramente grata por este filme ter recebido todos os prêmios e reconhecimentos que vem recebendo. É a única coisa que me manteve sã enquanto testemunhamos a crueldade e a carnificina, bem como a insana hipocrisia global, corrupção política e padrões duplos. Então, sou grata por termos conseguido compartilhar esta obra neste momento, acredito que falo em nome de todos aqueles que trabalharam comigo, que esta é a nossa contribuição e nosso engajamento ativo em solidariedade ao povo palestino, agora que está sofrendo com toda a dor e perdas inimagináveis. Então, sinto-me orgulhosa, honrada e privilegiada por poder emprestar minha expressão artística a tudo isso, especialmente neste momento.  

O REINADO DA POESIA

O REINADO DA POESIA

 

Ao entrar em uma livraria na região do Alentejo, Portugal, Carlos Gomes diretor do filme “O Poeta Rei”, se deparou com o livro “Meu Coração é Árabe”, uma coletânea de poetas mouros que viveram ao sul da Península Ibérica entre os séculos V e XII. Entre os bardos presentes na obra, um deles o fascinou: Al Mu´tamid Ibn Abbad, que ascendeu ao trono de Sevilha no ano de 1069.  Naquele instante uma inquietude se apossou de Carlos, urgia saber da vida e da poesia desse Soberano que, como percebeu o diretor, “expressava a contradição de desejar viver a vida e ao mesmo tempo provocar a morte, nas tantas guerras pela disputa do território Andaluz”. Pela via da artes, Al Mutamid contava ao mundo as contradições de seu vasto interior. 

 

A história recente da produção começa  neste encontro na livraria. Mas quem sabe ela não começou mil anos antes, na adolescência do futuro rei, no momento que ele chega à atual cidade de Silves, Portugal, lá cercando-se de outros poetas e sábios do Al Andaluz, inicia sua intensa vida de prazeres sensuais e especulação intelectual. Fascinado pela busca do conhecimento, uma característica, diga-se, do auge da era islâmica, e sabendo que até a própria busca se transforma em saber, o diretor português empreende uma viagem que vai de uma pequena cidade alentejana até o Marrocos, passando por Sevilha. O ator Adriano Carvalho conduz essa jornada como um alter ego do diretor e ao mesmo tempo encarna a figura de Al Mu ‘tamid, contando em poemas parte de sua história. Essa também é uma viagem para dentro do pensamento do Rei, como nos conta Carlos Gomes. “Ao tentar entrar na cabeça de Al Mu ‘tamid, não sei se o consegui, mas de fato essa foi a ideia do filme, através, digamos, de um ator que vai à procura do mito deste personagem. É um bocadinho como recontar da minha própria história com ele, mas por via de outra pessoa, isso também é muito interessante, porque o Adriano é um grande ator, e de uma forma muito sutil, passa esse progressivo envolvimento com aquilo que vai narrando Al Mu´tamid. Uma das coisas que me fascinou na persona dele, foi ser, ao contrário dos poetas da época que trabalhavam a pedido de outros,  alguém que tinha a possibilidade de falar na primeira pessoa, porque era rei, era um homem poderoso e, portanto, falava do que lhe apetecia e do que queria falar.” 

 

Nessa imersão poética vamos conhecendo a fascinante história de Al Mu ‘tamid, suas amizades, seus amores e o intenso conflito de um homem possuído pela sensibilidade vivaz da poesia mas também preso aos seus compromissos com o poder.  Desde muito cedo ele foi chamado a essa responsabilidade oficial por seu pai  Abbad Al-Mu´tadid – considerado um governante implacavelmente violento – que reprovava seu estilo livre de ser e suas amizades, particularmente com outro poeta, Ibn Amr. Em uma das passagens mais belas do filme, Al Mu ‘tamid narra seu encontro com Intimad que viria a ser sua esposa. Durante uma cavalgada na companhia de Ibn Amar, a dupla avista à beira de rio um grupo de moças em sua faina de lavadeiras e, inebriado pela “visão da beleza daquelas mulheres”, o Poeta Rei propõe ao amigo o desafio de “perseguir a minha rima”. Ele inicia um verso, mas antes que o companheiro pudesse responder com outro verso, uma voz feminina dá a resposta ao poema, completando-o. É Intimad quem “vence” o desafio e toma o coração do Poeta. Anos depois, por um sortilégio do destino, Ibn Amar, aquele que tão harmoniosamente dividia o espírito artístico com Al Mu´tamid, acaba, anos depois, sendo executado pelas mãos do antigo amigo, na cela onde se encontrava preso em consequência de uma traição política. Amar ocupou o cargo de ministro no Reino de Sevilha, mas ao conquistar a localidade de Múrcia tentou torná-la independente do reino. “O dia em que eu o matei foi um daqueles momentos em que a razão de um homem se encontra em círculos de cólera e não consegue fugir”, conta o Rei. 

 

Percorrendo o tempo e o espaço através da poesia e da história, Carlos visita o passado e o presente, de certa forma, sem sair da sua Portugal natal.  “A verdade é que eu, cada vez que viajo para Marrocos, sinto-me bastante em casa. Ou seja, ao fim de dois, três dias, sinto-me muito próximo daquilo que acho que é, o mais íntimo, vá, do meu ser, não é? Da minha personalidade, da minha emocionalidade. Talvez através de uma herança genética e também comportamental de hábitos culturais mais sedimentados no sul do país. A sensação que eu tenho é que há um mundo, uma cultura gigantesca, não é? Mas, quer dizer, de certa forma, no Ocidente e, em particular, em Portugal e em Espanha, países onde isso faria  sentido, é bastante ignorado. O que não deveria acontecer. É uma brutalidade. Não é uma civilização com a qual nós não tenhamos nada a ver. Em Portugal, acho que há cerca de 18 mil expressões do árabe, da língua árabe na nossa língua portuguesa.  Nós a falarmos, normalmente, no nosso cotidiano, estamos a vincular, digamos, uma cultura, não é? E só isso já seria, digamos, a razão suficiente para haver essa maior proximidade. Nós também somos árabes. Mas tem uma coisa que eu tenho tentado perceber, e, ao mesmo tempo, questionado, por quê não há maior relação entre Portugal e o mundo árabe, pelo menos neste plano cultural, o que é muito estranho. A única explicação que encontro para isso é o fato de, se calhar, politicamente e historicamente, estarmos a falar do povo que foi expulso, que foi derrotado, não é?”.

 

Uma das raízes de O Poeta Rei, um filme indefinível entre o documentário e a ficção, para o diretor é uma “ficção psicológica”, é um concerto musical. Carlos reuniu músicos portugueses, espanhóis e marroquinos para cantar a poesia de Al Mu ‘tamid nos idiomas dos três países. A apresentação foi levada ao Brasil em 2017 na Sala São Paulo como parte da programação da 12ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, com o título de “Al-Mu’tamid, poeta rei do Al-Andalus – Uma viagem por dez séculos de música e interculturalidade”. “Foi, de fato, um acontecimento muito bonito. Eu próprio, confesso, pensava que nós íamos tocar pra, sei lá, 300 pessoas, e a sala de São Paulo estava completamente esgotada. Realmente uma reação brutal, de aprovação esmagadora. Foi particularmente bonito porque eram famílias inteiras, ou seja, três gerações, avós, pais, filhos, de descendentes, sobretudo, libaneses, creio. Foi muito bonito, de fato, ver essa espécie, digamos, de contato entre eles, que transportam essa cultura no seu dia-a-dia, e esta espécie de memória daquilo que foi essa cultura na Península Ibérica. E perceber que esse mundo ainda existe em uma determinada realidade.”

 

Com a presença do diretor, “O Poeta Rei” fará sua estreia no Brasil nessa 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, coroando uma parceria e uma conexão que começou em 2017. É um projeto ligado ao ICArabe não só porque iniciou com o concerto apresentado em São Paulo e depois inspirou um filme, mas por estar em sintonia com os propósitos do Instituto de Cultura Árabe: aproximar culturas, quebrar rótulos e preconceitos através do conhecimento e da arte. Nos primeiros minutos da projeção ouvimos a voz em off do narrador-ator nos levando a refletir… um coração se pode definir por um lugar cultural? Esta possibilidade é absolutamente encantadora, mágica: ser atraído, se reconhecer em uma outra cultura através de traços sensíveis, que podem vir de uma nota musical, um verso, ou do aroma de uma especiaria nos transportando a um lugar desconhecido, e ao mesmo tempo reconhecível em nosso ser, mesmo que você não seja geneticamente árabe. É algo além do  resgate  da cultura árabe nos solos lusitanos,  que nos chegou aqui por duas vias principais: a imigração sírio-libanesa e a influência moura nos portugueses que colonizaram o Brasil. 

 

Ao final desse artigo/entrevista, peço licença para falar em primeira pessoa e contar da minha emoção a ver no correr dos créditos uma homenagem a Edgardo Bechara El Khoury, falecido precocemente e diretor do Cine Fértil, instituição também dedicada a divulgação do cinema e da cultura árabe, incansável defensor e promotor desse “coração num lugar cultural”, que nos fala “O Poeta Rei”, produção que o próprio Edgardo era um entusiasta. Nesse universo fraterno, nessa humanidade em comum nos encontramos.

                                      

QUANDO NÃO HÁ ESCOLHA 

Em Aden, parte sul do Iêmen, uma família de classe média iemenita passa por tremendas dificuldades financeiras, Ahmad, o pai, foi demitido de um canal de televisão, trabalha como motorista de uma van e luta pra receber os que os ex-patrões lhe devem, eles estão na iminência de se mudarem para uma casa em condições muito precárias quando revela-se que Isra´a, a mãe, está grávida do quarto filho. Num  país recém-saído de uma guerra que durou quase nove anos e matou 150 mil pessoas, a família não tem condições nem de sustentar apropriadamente os seus três filhos. Ahmad, pressiona a mulher a abortar. Enquanto ele está decidido, ela vacila e se sente culpada por pensar nessa possibilidade, mas não vê outra saída. O casal procura respaldo religioso em declarações de clérigos e citações do Corão. Isra´a, ainda que com drama de consciência, apela por ajuda às médicas que a atendem, nenhuma delas a socorre. Para o diretor de “Um Fardo”, Amr Gamal, o filme não trata sobre o direito ao aborto: 

“O problema são as condições econômicas, de como a economia empurra as pessoas para tomar esta decisão. Isso levanta uma questão: ter mais um filho é necessário? Se você não tiver como sustentá-los, as outras crianças vão afundar na pobreza. Talvez elas não tenham as mesmas chances. Então devemos manter a gravidez? Só   por que achamos que é proibido, ou não é bom? No filme há uma cena em que o pai cita o profeta Al-Khabar: Deus teria dito para matar uma criança, porque no futuro ela será um fardo para os pais. Então, o personagem pensa que é o mesmo caso dele. Isso cria uma discussão. Se Isra´a fizer o aborto em sua casa talvez ela morra. Porque quando você precisa abortar, ninguém pode te impedir. E a mulher é forçada a fazer isso de uma forma que não é segura, não é saudável.  Há muitos questionamentos a se fazer. “Um Fardo” foi motivado pelo colapso econômico e quão brutal é essa guerra e como de repente começamos a pensar em abortar nossos filhos porque não temos dinheiro para alimentá-lo. E esse filme foi baseado na história de um amigo meu”. 

“Um Fardo” nos revela uma série de nuances em relação à situação da mulher na sociedade iemenita. Amr entende que, se retratasse as mulheres do Iêmen de uma forma estereotipada, teria um outro efeito no chamado Ocidente:

“Se eu fizesse um filme com esse retratando um mulher que está lutando contra a comunidade para fazer um aborto, ficaria mais palatável para o Ocidente, mas fizemos um filme sobre a família que tenta sobreviver às dificuldades, e sobre a decisão mútua entre esposa e marido. E isso é algo novo também, eu acho, porque vimos muitos filmes de aborto. Acho que fiz isso inocentemente, e as pessoas me disseram que gostaram  daquela dinâmica entre marido e mulher, da forma como ela se recusou que ele colocasse a mão nela, de como ele chora para se desculpar de uma agressão anterior. Essas coisas foram surpreendentes para muitos, até mesmo em alguns países árabes, mas é assim que vejo as mulheres na minha sociedade. Elas são fortes, são lutadoras. Elas não aceitam a humilhação. Já havia essa dinâmica no meu filme anterior “10 Dias Antes do Casamento”, que é um filme comercial, de comédia, onde a mulher também era forte. Esse é o meu entorno, minha família, a mulher do meu bairro. Com certeza, há violência doméstica em todo o mundo. Mesmo nos Estados Unidos e na Europa. Mas tenho certeza de que no Iêmen é muito equilibrado”.

“Um Fardo” foi premiado em diversos festivais no Oriente Médio, África, Europa e Estados Unidos, mas ainda não foi exibido em Áden, onde foi filmado, porque na cidade não existem salas de cinema, todas foram destruídas na guerra civil de 1994. Nesse momento, Amr prefere reconstruir um antigo cinema do que apresentar em locais alternativos, como um salão de festas, por exemplo. Ele está pessoalmente envolvido nesse projeto de reconstrução e já tem o apoio da UNESCO para a empreitada. O registro do patrimônio histórico e cultural da cidade é um dos objetivos do diretor, no filme, cada cena é projetada para preservar a memória de uma edificação, como a livraria Obadi, a mais antiga de todo o Golfo Pérsico. Para obter esse retrato, a produção  usou muitas tomadas longas e em plano aberto. Amr contratou até o fotógrafo indiano Mirnal, experiente nesse tipo de filmagem. Ele está preocupado não só com a preservação arquitetônica, mas também de múltiplos aspectos culturais da cidade e do país. “O Iêmen é especial, e Aden é muito especial para mim. Por razões políticas, Aden não foi mostrado na mídia. E muita injustiça aconteceu aqui. Então esse é sempre o meu motivo para fazer mais e mais filmes. Para que eu possa documentar a cidade, documentar o dialeto do povo de Aden”, revela Amr. Sutilmente, ele insere uma cena onde aparece um casal da comunidade Bohra, de confissão muçulmana shia, minoritária e que vem sofrendo discriminação; para dar um recado de tolerância e respeito às culturas.  A luta pela reconstrução e preservação da cidade é para ele uma jornada difícil, porém, doce. “Porque amo minha cidade e me recuso a deixar Áden”. Amr conta que teve muitas chances de sair para o exterior, mas recusou todas elas. “Eu sou privilegiado por ter esta chance de nascer para viver e passar minha vida em um país especial que tem muitas histórias. Eu tive o privilégio de fazer parte desta comunidade que é uma comunidade muito bonita. Às vezes eu os odeio, mas no fundo, eu os amo”. 

O Iêmen vem sendo massacrado ao longo dos anos, mas se mantém em pé, orgulhoso, com uma cultura diversa e cosmopolita, mesmo que esse termo seja preconceituosamente apenas associado a lugares como Nova Iorque ou Berlim, numa arrogante hierarquização das culturas. “Um Fardo” é uma narrativa intensa, sensível, de um drama familiar, sem deixar de lado a história e a essência de um país. Desse modo,  o autor nos leva a também, como ele, a amar Aden e o Iêmen. E o seu filme.

 

A BABILÔNIA RECRIANDO SUA PRÓPRIA HISTÓRIA

Depois de duas guerras contra os EUA e uma colizão de países ocidentais, sanções econômicas que levaram parte de sua população à miséria, ter perdido um terço de seu território para o autodenominado Estado Islâmico e lutas sangrentas pelo poder entre facções locais, o Iraque está destroçado. A população empobrecida e sem esperança. Nessa exaustão, não é estranho que algumas resenhas sobre o documentário “Imortais”, da diretora suíça Maja Tschumi, rodado em Bagdá, se refiram à história como uma distopia. Diferentes de muitos seriados vistos em streamings – a distopia entrou na  moda – não se trata de um “futuro” distópico: mas sim um presente desalentador, um país com um governo fraco e uma crescente influência de milícias controladas por agentes externos; mais um povo entregue aos desmandos das ambições da geopolítica mundial. Lá não há lugar para os jovens e eles não têm esperança alguma no futuro. Em outubro de 2019, eclodiu um protesto da juventude contra o governo do primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi. A repressão do governo foi brutal: 780 pessoas mortas. 

A partir de um encontro, em Berlim, da diretora com um ativista iraquiano, ela tomou conhecimento da dimensão das manifestações, e iniciou o processo de criação do filme, com o propósito de retratar alguns jovens que participaram dos protestos na Praça Tahir, o mesmo emblemático nome da praça no Cairo onde aconteceu a Primavera Árabe. Ela ficou especialmente impressionada com a coragem desses jovens de lutar por justiça, autodeterminação e por um futuro melhor para toda a sociedade. Maja rumou para o Iraque em busca desses personagens, alugando um apartamento, e não um quarto de hotel, para vivenciar melhor o dia a dia da população iraquiana. Em quatro meses e três viagens de pesquisa, conheceu os dois protagonistas de “Imortais”. Primeiro o fotógrafo e cinegrafista Mohamad Al Khalili, que filmou várias horas de manifestações, foi baleado durante o trabalho e, por conta disso, sofreu sérias consequências físicas e psíquicas. O segundo personagem é Melak Mahdi, conhecida como Milo, socióloga e feminista, cuja participação nos protestos foi reprimida por seu pai que chegou a destruir seu passaporte e trancá-la em casa. Para poder andar nas ruas e aliviar as pressões sociais e familiares, ela adotou um corte de cabelo estilo masculino e passou a  vestir roupas de homem. 

Alguém poderia questionar a presença de uma visão exclusivamente ocidental sobre as problemáticas da política, da cultura e dos costumes locais. Porém, os personagens do filme, todos iraquianos, participaram do processo de criação de “Imortais”, ao ponto de serem creditados como co-autores ao lado de Maja. Essa autoria compartilhada foi feita de duas formas: o aproveitamento do material filmado diretamente por Khalili e a reencenação de várias situações vividas, principalmente por Milo. Mesmo que criando, por vezes, uma versão um pouco diferente para um mesmo acontecimento, a reencenação enriqueceu os personagens. Se Milo, por exemplo, exagerou em algumas situações encenadas é porque há um motivo para isso, o que acaba fazendo parte da história, e de sua história como mulher e lutadora. 

A diretora detalha essa relação com Milo e Khalili e o processo de interação e aprendizado mútuo dentro da equipe: “Eu não queria ser a diretora onde, tipo, os protagonistas me perguntassem, o que deveríamos fazer? Qual é a história? Eu estava procurando protagonistas que já tivessem uma voz visual conhecida. Por exemplo, buscava jovens que filmaram as revoltas de outubro. Encontrei Khalili e ele me deu, na terceira ou quarta reunião, seu disco rígido dizendo que queria levar aquelas imagens para fora do Iraque. Então começamos a construir um relacionamento de que ele queria algo, eu queria algo, e nos encontramos nesse propósito. Com a protagonista feminina foi a mesma coisa. Percebi logo que ela traria muitas ideias. Podia trabalhar com ela. Eu falava com eles quase todos os dias para entender o que eles faziam em suas vidas. A Milo trouxe muitas ideias. Logo ficou muito claro que negociaríamos sobre o que é a história. Sobre o que é a situação política. Nós aprendemos muito uns com os outros. Eu estava em contato diário com eles também quando não estava no Iraque. Fui dois meses antes das filmagens apenas estar lá, sentir como é a vida deles, com o que eles lutam, para conhecer muitas pessoas, para entender um pouco como a sociedade iraquiana estava falando sobre os movimentos de protesto, ter uma visão mais ampla”. 

Há alguns aspectos da vida de Milo que não podiam ser revelados abertamente. Sua família não deu nenhum depoimento e sua homossexualidade está apenas sugerida, pra preservar a sua segurança. Khalili também está sob constante ameaça por ter registrado os protestos, e durante as filmagens de “Imortais” um dos seus melhores amigos foi sequestrado e torturado por milícias ligadas ao Irã, Uma vez solto, contou que pediram a ele que não fosse a nenhuma manifestação e não se referisse a política do país persa no Iraque. Não houve nenhum episódio mais agudo de violência contra a equipe, mas a intimidação do governo e das facções armadas era constante e, por vezes, criava um clima mais tenso. Os dois personagens principais estão hoje fora do Iraque e com pedido de asilo,  conforme podemos ler no site de “Imortais”, Maja Tschumi assumiu o compromisso público de ajudar seus companheiros nessa jornada a conseguir refúgio em algum país europeu. Apesar de todas as dificuldades, ameaças veladas e insegurança que passou todo o processo, a diretora revela que “adorou” o Iraque, sua gente e sua cultura, lamentando que um país com sua história e suas grandes contribuições civilizatórias esteja desmoronando. 

O futuro é nebuloso nas terras da antiga Babilônia. O que temos certeza é que Maja, Milo e Khalil fizeram um belo trabalho em sua arte e sua vida. O generoso processo de filmagem resultou num mergulho profundo nas almas ansiosas, inconformistas, inquietas, mas também conflituosas, contraditórias… e apaixonantes desses jovens. Uma obra carregada de humanidade e, sendo assim, universal. 

 

Revista Diálogos Nur

Texto e edição: Gil Rodrigues. 

Produção: Arthur Jafet e Gil Rodrigues.